28 de março de 2019

policromática

você disse que gosta de olhos que têm gosto de perigo

os meus olhos te convidam à segurança e a calmaria do meu peito

como foi que te encarei por tanto tempo e achei que tu me enxergava

enquanto você ria, me acenava e ia embora sem afeto

como explicar que nossos olhos se cruzaram tantas vezes

se eu sempre fui a vidraçaria pela qual tu avistava outros rumos

eu, sem cores
tu, uma aquarela de desejos

meu destino é ser plano de fundo
pra tua exposição policromática

Por Aline Nobre

8 de março de 2019

[sobre o oito de março]


eu nunca fui de seguir o papel que me foi imposto pela sociedade
parece que veio de nascença o desejo de ser tudo aquilo que disseram que eu não podia

eu fui menina quieta, calminha
assim como manda o protocolo
mas eu também jogava futebol de travinha todo santo dia com os meninos da minha rua

eu fui tímida e reprimida
do jeito que o sistema gosta
mas de mim saía faíscas de que eu podia ir além e nunca subestimei minha capacidade intelectual frente aos meninos da escola

eu fui carinhosa e nunca fui agressiva
assim como me foi ensinado
mas eu sempre soube que sou forte (fisicamente mesmo) e eu sempre ganhava dos meninos nas competições de queda de braço

eu usava vestido e fechava bem as pernas
assim como como a voz social gritava na minha cabeça todo dia
mas eu também usava os uniformes de time e os tênis do meu irmão sempre que podia

eu segui todos os conselhos de não sair de perto de casa pra concluir o ensino superior perto da família
assim como me foi exigido quando cogitei sair do interior
mas eu escolhi uma faculdade de engenharia e hoje trabalho num meio majoritariamente masculino

eu segui os papéis de ser alguém agradável socialmente
mas sempre que eu abria a boca era chamada de “a do contra”
e ainda bem que eu abria
abri também os olhos

sou a mais nova da casa e primeira da família a conseguir finalizar o ensino superior
não porque as que vieram antes não são tão boas quanto eu
mas porque elas tiveram trabalho demais preparando o terreno pra eu chegar onde estou

eu reconheço que só posso ser tudo que sou
usar as roupas que uso
trabalhar onde trabalho
ter a formação que tenho
sair pros lugares que saio
enlaçar as mãos nas mãos que enlaço
falar as coisas que falo
escrever as coisas que escrevo

porque muitas mulheres vieram antes de mim
e lutaram por mim
é mais que minha obrigação lutar pra que as meninas que virão
possam fazer tudo que eu faço
sem precisarem se reafirmar a todo instante
como eu

eu sonho com o dia que este dia chegue

afinal, é pra isso que serve o oito de março
pra lembrarmos de tudo que conquistamos
agradecermos aquelas que vieram antes de nós
olhar pra tudo que ainda temos que conquistar
e deixar as forças de outras se juntarem as nossas pra mirarmos um outro horizonte possível

companheiras, avante!

28 de fevereiro de 2019

Uma voz serena


Dona Francilene morava sozinha numa casa muito simpática na rua da Prefeitura, perto o Bar da Erivanda, mas eu não a conhecia e nem tampouco tinha ouvido falar nada sobre ela.
Aconteceu que eu fui tocar violão numa missa de domingo, como faço de costume, e ela estava lá. Ela era uma dessas senhoras que parece que já fazem parte da arquitetura da igreja, como a imagem de Jesus crucificado, como os bancos, como o altar, como os ventiladores de parede. Ela sempre estava lá, sentada nos bancos do meio, misturada com os demais fiéis.
Mas neste dito domingo no final de 2015 ela deixou de ser apenas mais um elemento do ambiente dominical. No final da missa, quando eu estava apressadamente guardando o violão na capa, ela resolveu que era o dia de entrar na minha vida. Se achegou perto de mim, como quem queria conversar, e eu deixei. Ela começou a falar timidamente sobre eu tocar violão, me elogiou, eu agradeci e então ela chegou onde queria chegar: “eu também tocava violão quando era jovem”. Fiquei surpreendida e me interessei mais ainda pela conversa. A conversa não se alongou muito, mas resultou num convite pra eu ir ver o seu violão em sua casa.
            Demorei umas semanas pra finalmente visita-la e então ela me ligou reforçando o convite. E eu fui. Ela comprou guaraná especialmente pra mim, assim como fez todas as outras vezes que eu a visitei. Descobri que ela ainda tocava violão muito bem, inclusive melhor que eu. Pegava músicas de ouvido, me ensinou notas que “combinam”, tocou músicas de cantoria acompanhada das histórias de juventude que marcaram tais músicas, me mostrou os tapetes que ela fazia com retalhos de tecidos, os guarda-chuvas que ela concertava, contou sobre os seus dedinhos pequenos que foi um “mal” de nascença, falou como aprendeu a tocar violão, falou dos seus sonhos de juventude, do remédio novo que o médico tinha passado, sobre sua vinda pra Banabuiú sozinha, sobre um sobrinho que morou com ela uns dias e de mais um punhado de histórias.
            Na páscoa eu fui na casa dela de surpresa entregar uma lembrancinha que tinha feito com uns sabonetes e ela ficou tão agradecida que ficou sem graça, procurando algo pela casa pra me retribuir até que eu finalmente convenci de que ela não precisava me dar nada. Neste dia tirei uma foto sem que ela percebesse dela tocando violão.
            Eu fiz uma anotação mental pra me lembrar de comprar um dominó pra presenteá-la, pra que a gente jogasse quando eu fosse lá, mas acabei esquecendo.
            Minhas visitas começaram a ser menos frequentes. A faculdade começou a apertar e então eu comecei a ficar mais em Quixadá do que em Banabuiú. Ela as vezes me ligava e eu a encontrava nas missas dominicais, até que ela parou de ir à missa. Soube que ela não estava bem da saúde. Fiz uma outra nota mental de ir visita-la. Demorei e não houve tempo. Recebi a notícia. Era 2017.
            Passei muitos dias me sentindo mal e me lamentando por não ter estado com ela em seus últimos momentos e ao mesmo tempo grata por tê-la conhecido e me deixado cativar por aquela senhora tão doce. Quis escrever um poema, mas não consegui.
            Hoje enquanto eu caminhava na pracinha da igreja, as lembranças dela me atingiram em cheio e ficaram ecoando no meu peito. Decidi que além de guardá-la no peito, preciso guardá-la nas palavras também.
            Esta é Dona Francilene. E sou muito feliz de ter sido sua amiga.

18 de janeiro de 2019

eu queria dizer tanta coisa pra aline de 2009


eu queria dizer que ela é linda e que seu corpo é lindo, independente do que qualquer pessoa dissesse a respeito dele

eu queria dizer pra ela que se esconder não é a melhor saída e que sua risada estridente era muito gostosa e não deveria ser presa por nada e nem ninguém


eu queria dizer também que ela tem uma voz que precisa ser usada pra falar das coisas que ela sente e que sempre calar a faria sofrer bastante no futuro


eu queria dizer que não tem problema nenhum ela gostar de futebol e que isso não fazia dela menos menina do que as outras da sua turma


eu queria dizer pra ela que não tem nada de errado no seu corpo, nem cor, nem tamanho, nem pêlos e que um dia ela encontraria beleza em cada poro da sua pele


eu queria dizer que nem todas as pessoas são boas, mas que uma das coisas mais lindas nela era essa capacidade de acreditar na bondade da outra


eu queria dizer pra ela não se sentir tão pequena e que seu coração é mais lindo do que o estrelado céu que ela olhava toda noite da varanda


eu queria dizer pra ela não ter tanto medo de crescer e que futuramente ela não realizaria todos os seus sonhos, mas que ela conquistaria coisas tão melhores que ela nem imagina que são possíveis


eu queria dizer que ela não precisa se diminuir pra caber dentro das relações de amizade e que ela ainda conhecerá pessoas que vão valorizá-la por completo


eu queria dizer pra aline de 2009 que os próximos anos serão difíceis, mas serão melhores do que os que passaram, que ela vai conseguir superar os seus medos e que ela vai se orgulhar muito da mulher que ela será


aline de 2009, não se preocupe, você está indo bem.